Texto- Parte da Dissertação de meu Mestrado Capítulo l
- O futebol, principalmente o profissional, se apresenta como um relevante instrumento na vida social e colabora para a consolidação da identidade nacional, estando fincado nos lugares mais longínquos da terra brasileira. Através dele se verificam múltiplos aspectos contidos na sociedade e seus elementos naturais. Sua influência local é tão forte que, assim como inúmeras pessoas lembram uma partida de futebol jogada há tempos, lembram também do espaço onde foi jogada. Há uma aglutinação por conta do futebol profissional envolvendo a quase todos, sem distinção de classe social, de gênero, ou de cor.
Não se tem completa clareza quanto à chegada do futebol no Brasil. Alguns historiadores acreditam que o futebol foi trazido por marinheiros ingleses, que foram vistos jogando bola em um cais do porto do Rio de Janeiro em 1872. Contudo a versão mais aceita é a de que o estudante inglês Charles Muller – filho de um cônsul britânico residente em São Paulo, trouxe esta “novidade” para o Brasil. (Costa, 2001). Existe ainda outra teoria sobre o desembarque do futebol no Brasil. Segundo Cláudio Nogueira (2006), quem verdadeiramente trouxe o futebol para o Brasil foi o brasileiro Oscar Cox, na última década do século XIX.
Independente das implicações desta polêmica, o que nos interessa é entender como o futebol se desenvolveu inicialmente por aqui, visto que, a princípio, o futebol era uma atividade praticada pela elite dos centros urbanos que vinha se desenvolvendo na virada do século XIX, em virtude do “início” do processo de industrialização no país. O futebol era praticado não como um esporte, mas como um jogo que tinha como objetivo a reunião, através de uma prática lúdica, da alta sociedade representada por uma burguesia nascente nas cidades. Posteriormente, instituições de ensino da burguesia introduziram o futebol em seus currículos acadêmicos (Toledo, 2000).
O processo de assimilação do futebol pela elite brasileira ocorreu pelo fato de que no decorrer do século XIX e, também, no início do século XX, era muito comum que os filhos de grandes empresários e latifundiários estivessem acostumados a sair do Brasil para estudar na Europa, especialmente na Inglaterra, que no período até a primeira grande guerra, era a principal potência mundial. Esses jovens da elite nacional, ao entrarem em contato com o futebol em solo europeu, passaram a importar equipamentos, técnicas e regras deste jogo, visto que a elite nacional tinha como costume importar costumes europeus, sobretudo ingleses, no sentido de afirmar sentimentos de progresso e de civilidade.
As primeiras partidas realizadas no Brasil de que se tem notícia ocorreram em São Paulo, em 1895, entre os sócios do clube “São Paulo Atlhetic Club”, que incorporou a modalidade nas atividades recreativas; já no Rio de Janeiro, os primeiros jogos realizados ocorreram por volta de 1901 entre os times do “Paysandu” e o “Atlhetic Association” de Niterói (Costa, 2001). Do ponto de vista de uma maior organização administrativa–institucional do futebol no Brasil, o primeiro passo ocorreu com a fundação da “Liga Paulista de Futebol” em 1902, e com a criação da “Liga Carioca de Futebol” em 1914, quando a partir daí passaram a ser organizadas as primeiras competições de futebol. Todavia, até a década de trinta, a organização do futebol no Brasil possuía ainda um “ethos amador” (Elias e Dunning, 1992), ou seja, era mais uma forma de “divertimento” e de “prazer” com um fim em si mesmo.
Portanto, foi a partir da década de trinta (período este em que passaram a ser realizadas as primeiras Copas do Mundo) que o futebol passou por uma maior estruturação profissional, de modo a marcar um processo pelo qual a competição se tornou mais importante do que a ênfase na dimensão lúdica de sua prática (Huizinga, 2001).
Carlos Alberto Pimenta cita que:
“O esporte é um bom exemplo para se estudar as transformações políticas, econômicas, e socioculturais pelas quais passam a sociedade brasileira. [...] O futebol traduz-se no maior fenômeno de massa do século XX e início do século XX1. No mundo, caracteriza-se como importante espaço aglutinador de jovens e associa-se aos argumentos intimamente ligados às mudanças sociais de nosso tempo” (2006, pag 18).
A prática do futebol encontra-se disseminada atualmente pelos quatro cantos do mundo, todavia seu grau de inserção em cada sociedade obedece a intensidades variadas e processos históricos diferenciados. A globalização, a conseqüente diminuição das distâncias de espaço e tempo, tem acarretado um processo de homogeneização “global”, que apresenta dinâmicas diferenciadas em sua esfera “local” (Hall, 2001).
Kofi Annan, ex-Secretário Geral da ONU, na ocasião da realização da Copa do Mundo da Alemanha em 2006, teria proclamado o “futebol global”, dizendo:
“A ONU morre de inveja da Copa do Mundo. O evento é o apogeu do único esporte verdadeiramente global, jogado em todos os países, por todas as raças e religiões. É um dos únicos fenômenos tão universais como as Nações Unidas, ou até mais universal. A FIFA tem 207 membros e nós temos apenas 191. Mas há muitas outras razões para ficar com inveja” [1].
O futebol é um fato social que é objeto de estudo da Sociologia, e, para firmar tal compreensão, pode-se atentar para o que diz Helal:
“Certamente o torcedor de futebol mais “fanático” do Brasil não se interessaria por esse esporte caso tivesse nascido e sido criado no Japão ou nos Estados Unidos. Da mesma forma, poderíamos dizer que: Pelé, Garrincha, Rivelino e Zico não teriam tido a menor intimidade com a bola nos pés, caso tivessem nascido e sido criados na China, no Japão, nos Estados Unidos ou na Austrália. O “gostar de futebol” no Brasil existe fora das consciências individuais dos brasileiros, da mesma forma que o “gostar do beisebol” existe fora das consciências dos americanos, e o “gostar do hóquei no gelo” existe fora das consciências individuais dos soviéticos. O gosto ou paixão por um determinado esporte não existe naturalmente em nosso “sangue”, como supõe o senso comum. Ele existe na coletividade, em nosso meio social que nos transmite esse sentimento da mesma forma que a escola nos ensina a ler e a escrever [...] Sendo assim, o primeiro passo para uma compreensão sociológica do esporte no mundo moderno é encará-lo como um fato social, isto é, como algo socialmente construído, que existe fora das consciências individuais de cada um, mas que se impõe como uma força imperativa capaz de penetrar intensamente no cotidiano de nossas vidas, influenciando os nossos hábitos e costumes” (1990, pag 13).
O autor continua a demonstrar a importância do futebol para a Sociologia destacando observações idênticas de Kofi Annan:
“O esporte é uma das instituições sociais mais sólidas do mundo moderno. Para se ter uma idéia, a Federation International Football Association (FIFA) reúne um número maior de nações afiliadas do que a Organização das Nações Unidas (ONU). Em quase todas essas nações, o esporte desponta como meta importante dos programas governamentais e, não raras vezes, as vitórias e derrotas no esporte têm servido como metáforas para os sucessos e fracassos de sistemas econômicos e sociais. Por isso, o estudo sociológico do esporte tem se transformado, cada vez mais, numa exigência, não somente para aqueles interessados na complexidade do fenômeno esportivo, mas tambem para aqueles que desejam ganhar uma melhor compreensão da realidade social” (1990, pag 12).
O espetáculo chamado futebol, proporciona ao público uma unificação de sentimento, que faz com que através do tempo do jogo não se pense em outra coisa senão no futebol, o que leva alguns autores como Debord, expressar tal espetáculo como parte do corpo social:
“O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própia sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. Como parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo o olhar e toda consciência. Pelo fato de esse amor estar separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza é tão somente a linguagem oficial da separação generalizada” (1997, pag 14).
O momento mais apropriado de se verificar a importância do futebol no mundo é, sem dúvida nenhuma, o momento da Copa do Mundo, organizado pela FIFA, a qual ocorre a cada quatro anos. A este evento que concentra milhões de olhares, se aplica uma frase de Roberto DaMatta:
“A copa do Mundo distingue-se da Olimpíada por concentrar todas as atenções num só esporte: no “nosso” futebol. Enquanto nos Jogos Olímpicos existe uma enorme variedade competitiva, que inclui esportes individuais e coletivos, na copa o futebol é o dono exclusivo de todas as atenções” (2006, pag 25).
O futebol no decorrer do século XX passou por profundas transformações, tanto no que diz respeito a uma maior estruturação e profissionalização de sua prática, como na sua imagem e recepção frente à sociedade, haja vista que o futebol passou a extrapolar os limites de seu campo esportivo, e passou a ser incorporado como um dos ícones culturais da identidade dos brasileiros, em que os jogos do Brasil, por exemplo, independentemente se gosta ou não de futebol e especialmente durante as Copas do Mundo, tornou-se uma espécie de “rito” que atualiza a idéia de um nacionalismo/patriotismo brasileiro, quando, então, a idéia de um “Brasil harmonioso” e de um “país do futuro” é enfatizada frente às contradições e as desigualdades sociais oriundas das hierarquias de classe; nestes instantes de furor e aglutinação nacional pode-se ouvir em uníssono: “todos juntos Brasil, salve a seleção!”. Para isso, muitas vezes percebe-se que até mesmo outras programações televisivas são transferidas ou canceladas por conta do jogo do Brasil em determinado horário e, se não bastasse, muda-se o horário de escolas, horário de saída de funcionários, muda o trânsito, como se fosse uma coisa de demasidada importância, e que está acima da importância de todas as demais profissões. Nos jogos da Copa do Mundo, profissionais de várias áreas para de trabalhar. Os engenheiros interrompem o trabalho, os médicos interrompem o trabalho, os professores interrompem o trabalho, operários interrompem o trabalho, ou seja, o Brasil pára.
A Copa do Mundo provavelmente seja o único evento internacional que muda a rotina do Brasil e de muitas outras nações, dando a impressão que somente uma grande catástrofe pode ocupar esse espaço.
No entanto, com toda essa importância, foi com o transcurso do tempo que o futebol passou a ter status de profissional, conforme comenta Pimenta:
“Paulatinamente, as políticas populistas e econômicas da era vanguardista nortearam as relações sociais, e o futebol penetrou no cotidiano das cidades. No entanto, o jogador era profissionalizado, e a administração dos clubes permaneceu amadora, nas mãos de negociantes, comerciantes e industriais que geravam a possibilidade de o atleta com habilidades futebolísticas trabalhar numa indústria ou no comércio e receber bons salários e, acima de tudo, conquistar prestígio social” (2006, pag 45).
Às vezes, o profissionalismo do futebol brasileiro apresenta-se apenas como elemento retórico, porque vemos constantemente muito amadorismo nas relações sócio-culturais que nos impedem de considerá-lo como profissional.
Algumas coisas que apontam para esta falta de profissionalismo têm a ver com o fato de que os agentes e instituições responsáveis pelo futebol profissional no Brasil têm demonstrado pouco ou nenhum interesse com o futuro dos seus contratados, denunciando o fato de que eles apenas interessam enquanto têm sua habilidade física para oferecer à competição. E, também pela forma de gestão com o trato com as torcidas e todos os agentes norteadores desse espetáculo.
O ex-jogador Sócrates expõe sobre este assunto, na Revista Carta Capital[2], já que foi protagonista dentro de um campo de futebol:
"Foi numa esquina da vida que pude te conhecer, reconheci no teu rosto, desgosto, marcas de um grande sofrer.” Esta é a impressão que temos da face de boa parte dos torcedores brasileiros. Mesmo depois de inesperadas vitórias, até em Copa do Mundo, muito pouca coisa mudou por estas bandas. Talvez até por isso nada de peso tenha se modificado. Continua nosso amante do futebol a ser espoliado da forma mais vil. Jogos em profusão, modificações de última hora, equipes de poucos recursos, jogadores despreparados, estádios imundos, falta de transporte de boa qualidade, horários estapafúrdios, etc. A única boa novidade é a mobilização, ainda incipiente, de algumas torcidas organizadas para que, por meio de um processo de politização, passem a lutar por seus direitos, não só de torcedor, como também de cidadão. Virão os mais conservadores e os reacionários a dizer que este não é o papel de um torcedor de futebol, como se ele não fosse parte integrante e agente da sociedade em que vive. Na verdade, esses indivíduos têm um verdadeiro pavor de que isso um dia aconteça. É que neste país, nada mobiliza e agrega mais que o futebol, e poderá ser por meio dele que, teremos os exemplos que determinarão os caminhos que devemos seguir para transformar nossa sociedade em algo mais humano e da qual possamos nos orgulhar [...]”
É muito provável que nem todos os brasileiros vêem o futebol profissional como uma profissão ou talvez como um trabalho propriamente dito. E, se o é, urge observar que esta “profissão” não aparece nos principais diagnósticos e indicadores sociais e profissionais, como, por exemplo, os de Emprego, Trabalho e Renda, nem é destacada entre as listas de “melhores profissões” ou os “melhores empregos”. Observa-se também a ausência dos clubes na lista das melhores empresas para se trabalhar.
Pode-se fazer a seguinte comparação: atualmente, uma determinada empresa para obter Certificado de Qualidade precisa introjetar entre todos os seus profissionais o “Espírito de Qualidade”. Para receber esse Certificado de Qualidade, a empresa passa por exigências duras de mercado: qualificam os funcionários, em todos os seus níveis, qualificam-se e padronizam-se os produtos e serviços, e fazem investimentos em provisões para a aposentadoria de seus executivos. Nas profissões individuais, tais como: médicos, dentistas, advogados, professores, e outros, buscam especializações como uma forma de ganhar mais credibilidade e também buscar dar prosseguimento à profissão, independente de idade, enquanto houver possibilidade de atuação. Entretanto, os clubes que mantém o futebol “profissional”, se ausentam dessas exigências do “mercado” e praticamente abandonam os ex-jogadores de futebol profissional (ou os “ex-trabalhadores do futebol”), com raras exceções de alguns craques que tiveram tratamento diferenciado.
Barros, especialista em Qualidade e Excelência, comentando o reconhecimento mundial pela Qualidade, expõe:
“Produzir qualidade, pode ser considerada uma ação natural, normal, enfim, óbvia. Pode, também, ser considerada uma obrigação, partindo-se do pressuposto de que ninguém (ser humano normal) deve gostar de fazer algo que não tenha Qualidade. É uma questão de auto-estima. Imagina-se, em princípio, que alguém que produz um produto ou serviço sem Qualidade, assim o faz por desconhecimento ou inabilidade - e não necessariamente porque queira assim fazê-lo.
Desta forma, fazer com qualidade é uma atitude que enobrece as pessoas, tornando-as felizes, com a agradável sensação de utilidade. No momento em que o clima no trabalho é de satisfação por se estar produzindo com Qualidade, nada melhor para a manutenção deste clima que doses ou porções de reconhecimento. Nada é mais homogêneo do que a mistura fazer Qualidade e ser reconhecido [...] O ato de reconhecer deve ser algo valorizado, com sabor de conquista, na intensidade correta, no momento adequado. Reconhecimento nunca deve constar no manual de procedimentos da empresa, como algo normatizado, impessoal e frio. Deve ser uma atitude voluntária e usual da administração, em “efeito cascata”, que demonstre, uma preocupação constante com a Qualidade” (1996, pag 95-97).
Esta não é uma prática comum quanto ao reconhecimento no futebol profissional. Geralmente o que vimos em noticiários são clubes com problemas, contratos não cumpridos, dívidas com a Receita Federal e abandono de ex-jogadores de futebol após o encerramento de sua carreira. É discurso corrente socialmente que a maioria dos ex- jogadores de futebol profissional passam necessidades por conta da má administração de seus recursos, o que é responsabilidade dos mesmos. No entanto, uma questão que se impõe tem sido que isto é uma questão social que demanda uma política diferenciada, já que envolve um “mercado de trabalho” e relações sociais de trabalho que dificultam considerá-lo como profissional.
No que diz respeito ao futebol como uma profissão, fica evidente que não há unanimidade em considerá-lo como tal nas falas dos entrevistados. Coutinho afirmou:
“Ele é uma profissão, ele é uma profissão como qualquer outra, ele é tão desgastante como qualquer outra, mas, no entanto, ele se beneficia de uma maneira remunerada maior do que qualquer outra, então, eu acho que pra ganhar em termos de esporte mesmo, é Fórmula l e Futebol”.
Félix entende futebol profissional diferente das outras:
“Como as outras não, como uma profissão rentável. Bem rentável”.
Mengálvio afirma que:
“O futebol é uma profissão desde a minha época, era uma profissão não bem vista [..]”
Rincón acrescentou uma ressalva na compreensão do futebol como profissão:
“O futebol é uma profissão, sempre quando se projeta para uma profissão. Se você for um jogador de futebol e termina o futebol e você não projetou nada, não é uma profissão. Então quando você projetá-la, visando parar de jogar um dia e vai ser um técnico de futebol, você se prepara para essa parada, aí é uma profissão. Talvez se você paga um curso de negócios, de gestão, aí vira uma profissão. Se você não faz nada, só quando pára você pensa em fazer outra coisa, aí já não é”.
A afirmação de Rincón confirma parte dos questionamentos desse estudo, uma vez que a “profissão” de jogador de futebol requer uma estruturação para o momento de seu final como jogador, sendo possível o empreendedorismo, outros formatos de inserção no próprio esporte ou a inserção noutra profissão conforme sua formação acadêmica.
Nas profissões já consagradas, percebem-se mais do que nunca, as possibilidades de se dar prosseguimento à carreira através de vários tipos de especialização. A profissão de jogador de futebol não proporciona essa opção. Quando muito, pode ser rentável apenas para aqueles que viraram bons técnicos como Zagalo, Wanderlei Luxemburgo, Emerson Leão e outros.
Pimenta aponta dados importantes para compreensão da amplitude da questão:
“O futebol aparenta ser um amplo mercado de trabalho para os jovens. No Estado de São Paulo, temos cinco divisões profissionais e, em média, cada divisão tem vinte clubes. Cada clube tem vinte a vinte e cinco profissionais em seu elenco, exceto os grandes clubes, que têm mais de trinta atletas inscritos. Grosso modo, temos aproximadamente de 2.500 a 3.000 atletas profissionais trabalhando no Estado [...] Na prática, a modernização do futebol, ao contrário da perspectiva de um mercado promissor, promoveu o empobrecimento dos clubes de menor porte, a diminuição da qualidade do futebol, o achatamento dos salários dos jogadores, a transferência do processo de formação de atletas de rendimento para empresas privadas e a midiatização do evento esportivo. Isso tudo em curtíssimo prazo” (2006, pag 219).
Outra observação a ser feita para contextualizar essa questão é que, poucos profissionais de outras áreas ficam disponíveis vinte e quatro horas por dia, fins de semana e até meses, como os jogadores de futebol profissional, que se ausentam das relações familiares e se dedicam exclusivamente ao tabalho. É possível reconhecer os sacrifícios que fazem como decorrência da “profissão”, os riscos que correm, e a contribuição que trazem como modelos de cuidado para com a saúde trazidos pelos benefícios da prática esportiva. É possível reconhecer, também as histórias de mau uso do dinheiro recebido durante sua trajetória como jogador de futebol. É possível verificar histórias de sucesso e ajustamento, bem como histórias de verdadeiras tragédias pessoais e familiares. Estes aspectos nos levam a questionar se esse quadro, de fato, não seja um problema social que mereça uma análise mais aprofundada, e consequentemente, trazendo maiores benefícios para os próprios profissionais e também para que a sociedade possa perceber mudanças no profissionalismo do futebol, requeridas há tanto tempo.
Trabalhar ou ter uma profissão implica em atuar na principal forma de sobrevivência humana. Embora não sendo a única observam-se, cada vez mais as pessoas buscando outras formas de sobrevivência que independem do trabalho formal. Existem indivíduos prestando serviços a partir de suas residências, tem indivíduos com mais de uma profissão, tem aqueles que são empeendedores e tem aqueles que são especuladores. O que todos querem é o resultado final: a sobrevivência e a satisfação pessoal. Entretanto, o jogador de futebol profissional está sujeito a situações pessoais inusitadas, que muitas vezes perturbam sua atuação, e consequentemente, repercutem como uma mercadoria deficiente, o que implica nos ganhos ou perdas no interesse do capital.
Pereira em sua tese de doutorado em Psicologia Social comenta a ligação do jogador e dos clubes e compara o futebol como:
“inevitável tecido da vida no capitalismo avançado e apresenta-se como uma segunda natureza para os que dela fazem parte ou por ela se interessam [...] O que ele (o jogador profissional) não pode é deixar de comprometer o funcionamento da matriz a que pertence e sua capacidade de atuação e valor diante de seus mecanismos articulares [...]” (2008, pag 30).
Esta simbiose e suas consequentes relações mostram o que Toledo (1996) chama de processo de “esportificação”. Stigger (2002) diz que o futebol não pode ser interpretado somente como um fenômeno esportivo, pois deve ser atribuído também como resultado de industralização da sociedade, da dominação do capital e da ideologia dominante. Esse processo foi caracterizado pela crescente absorção de uma atividade esportiva pelo mercado e sua respectiva institucionalização. Esta situação não impediu de levar o futebol a uma maior popularização, antes, pelo contrário, levou à sua própria legitimação como um esporte de abrangência nacional.
Com o crescimento das cidades, da industrialização e dos serviços, foram criadas novas possibilidades para aqueles que desejam uma inserção profissional, através de especializações inúmeras, em diferentes categorias. Com esse aumento da população e com o aumento das especializações, houve também um aumento da desigualdade. O jogador de futebol é um profissional que não pode atuar em outra área, porque este segmento não lhe oferece a opção de ter dois empregos, às vezes até de estudar, devido às inúmeras viagens, concentrações e treinamentos. Se o profissional não for preocupado com as questões além de sua vida futebolística, ele se tornará alienado e esta possível alienação poderá lhe trazer dificuldades financeiras e frustrações pessoais que agredirão sua qualidade de vida.
O futebol em sua escala mais ampla, passou cada vez mais, no decorrer do século XX, no Brasil e em outras partes do mundo, a assumir a forma de “competição”, como uma maneira de reprodução e representação da estrutura capitalista, em que, assim como outros esportes, o futebol – especialmente no que tange a sua esfera “profissional” – passou a ser definido como uma “competição física jogada” (Stigger, 2002).
Para Stigger (2002), o futebol, como um dos ícones do esporte moderno, terá como características o fato de ser uma atividade secular, que preza pela igualdade, pela especialização, racionalização, burocracia, quantificação e pela busca de uma alta performance – conquistar recordes. Já Toledo (1996) analise que o jogo em si, na sociedade moderna, é caracterizado por uma “isonomia das regras”, isto é, ele parte de um pressuposto em que os jogadores e as equipes partem de uma situação marcada por uma igualdade de condições (no caso do futebol isto se expressa, por exemplo, através do “zero a zero” inicial do placar, e do número igual de jogadores por equipe; são “onze contra onze”), em que no final, de acordo com a performance dos competidores, o resultado final tende a levar a uma assimetria entre os participantes, ou seja, existem os vencedores e os derrotados.
Neste contexto, o empate é visto sempre como um problema, dificilmente esta ausência de vencedores e derrotados é bem recebida. No caso do futebol, especialmente em momentos decisivos da competição, lança-se mão de artifícios como prorrogação e pênaltis para finalmente definir um vencedor; quando o jogo chega a estes termos, valoriza-se a conquista, e ela passa a ser tratada como um feito épico, uma “batalha” ganha.
Portanto, nas competições oficiais o “ethos amador” que caracterizava os jogos no início do século, passou com o decorrer do tempo a se inserir dentro da lógica do capital e do trabalho industrial, em que, através da idéia de rendimento e performance, insere-se no jogo cada vez mais o ideal de sucesso e a produção de hierarquias no esporte. Este processo irá marcar também a crescente especialização, racionalização e burocratização dentro dos clubes, em que diversas funções serão criadas (desde o preparador de goleiros, auxiliar-técnico e preparador físico, até dirigentes de futebol, de marketing, entre outros) para tornar o jogo e tudo que o cerca em um grande espetáculo.
Ainda segundo Stigger (2002), elementos do processo produtivo do capital passaram a determinar as relações no futebol, e passaram a se expressar no próprio corpo do jogador, na medida em que ele passou a ser tratado como uma mercadoria de grande visibilidade e com “data de validade”. Nesta linha, assim que o “capital corporal” do atleta não consiga mais render aquilo que é esperado dele, na maioria dos casos voltará à sua posição de origem, ou seja, de invisibilidade social. Os ex-jogadores, neste ciclo de reprodução do capital, tornam-se “sucata” do sistema de produção de atletas, obrigando a que muitos deles, se encontrem em condições de miserabilidade.
O Jornal Le Monde Diplomatique Brasil, numa reportagem no mês de junho de 2002[3], aponta que o futebol, além de ser fonte de prazer, de socialização, de aprendizagem de regras e leis e de respeito ao outro, levando a que muitos sociólogos e filósofos não hesitem em atribuir ao futebol qualidades formidáveis – que indiscutivelmente ele possui e que justificam as paixões desencadeadas por esse esporte de um canto a outro do planeta – deve assinalar, no entanto, o que constitui seu paradoxo central: trata-se também de uma indústria baseada num sistema supranacional, capitalista, que é recoberta por um sentimento localista, regionalista e nacionalista, observado pelo referido Jornal:
“Na realidade, o futebol não é somente um esporte, mas também, e principalmente nas nossas sociedades de mercado, um setor econômico há muito subestimado e que se revela, por ocasião desta Copa do Mundo, um dos principais aparelhos estratégicos capitalistas, pois prepara as pessoas para o “horror econômico” e para a globalização liberal, fazendo-as aceitar a competição, a seleção, a flexibilidade, a precarização e o novo mercenarismo. Indiscutivelmente, admitindo-se que esse esporte-indústria desenvolve no mais alto ponto os dois parâmetros mais odiosos do sistema capitalista. De um lado, uma engrenagem mafiosa que se baseia na busca do lucro máximo (os dirigentes não hesitam em recorrer a empresas off-shore, em paraísos fiscais que servem para lavar dinheiro, corromper, fazer trambiques nos clubes, financiar o doping e controlar sistemas de apostas clandestinas). De outro lado, uma ideologia baseada no princípio do super-homem, da força, da violência, assim como num sentimento nacionalista fortemente localizado (não é só de surpreender que, de um extremo ao outro da Europa, as torcidas organizadas mais duras e violentas defendam explicitamente idéias racistas e se digam de extremadireita)”.
Teria o futebol um papel na difusão da ideologia da globalização? Para os escritores do Le Monde, sim.
É justamente sobre o papel do futebol na difusão da ideologia da globalização, sua iconicidade para com o sistema capitalista, os usos sociais perversos da “compra e venda” de corpos que trataremos neste trabalho.
Neste sentido, no Brasil esta realidade não é diferente. As mesmas práticas capitalistas se impuseram e vêm delineando o desenvolvimento deste esporte. A sociedade brasileira vem espontaneamente cooperando com essas práticas capitalistas, pois, para que as mesmas ocorram, é preciso que se aproximem o máximo possível com os elementos de identidade social, cujo futebol se enquadra.
[1] Folha de São Paulo, Esportes-02/06/06, p. 4.
[2] Extraído da Revista Carta Capital de 13 de Março de 2009, página.
[3] Extraído do site http://diplo.uol.com.br/imprima337, acessado em 13/03/2009.
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